Entrevista com Morihiro Saito Sensei

Por Gaku Homma

* * * Parece que a cada evento importante de minha vida, Saito Sensei estava presente. Ele estava em Iwama nos anos em que eu fui uchideshi do Fundador, Morihei Ueshiba. Seis anos depois da morte do Fundador, Saito Sensei veio, ao meu convite, para uma demonstração de Aikido no clube da base da Força Aérea de Misawa, onde eu estava ensinando – uma demonstração que me conduziu à oportunidade de vir aos Estados Unidos pela primeira vez. Agora, 20 anos depois, em Outubro de 1995, eu tive a oportunidade de convidar Saito Sensei para ministrar aulas na Nippon Kan Aikido em Denver, Colorado. Parece que foi em um piscar de olhos — o tempo passou muito rápido. Eu me lembro das experiências do passado como se elas tivessem acontecido ontem. Eu tenho 45 anos agora e Saito Sensei tem 67. Conforme o tempo passa e envelhecemos, eu acho que o nosso temperamento e valores mudam, nos tornamos mais tolerantes e geralmente mais predispostos à aceitação. Durante nosso seminário, enquanto eu cuidava de Saito Sensei e o observava ensinar, eu claramente me dei conta de como o tempo tinha passado, e quantas lembranças eu tinha. Quando Saito Sensei ensinava, eu nunca o ouvi falar sobre poderes universais, Deus, aura, paz ou ki, e eu nunca ouvi fazer nenhuma outra referência cósmica. No entanto, em cada um de seus movimentos, o seu corpo demonstrava o sentimento que essas palavras lutam para tentar captar. Este poder de tocar o coração das pessoas através da eloqüência de seus movimentos é o que o separa de outros. A sua técnica física e a sua filosofia são simples e firmemente plantadas no chão. Quem ele é e o que ensina é baseado no realismo, não em conceitos ilusórios que podem enganar ou confundir. Enquanto eu entrevistava Saito Sensei, eu não pude evitar sentir que eu estava ouvindo um pai atravessando os anos, passando a sabedoria de sua experiência para futuras gerações. * * *

Gaku Homma Sensei: Saito Shihan, você é muito saudável. Qual é o segredo de sua boa saúde?

Morihiro Saito Sensei: Agora eu tenho 67 anos de idade. No Japão isso me torna apto a me juntar às atividades de grupos de cidadãos seniores. Eu recebo muitos folders e convites para me unir às atividades de cidadãos seniores da cidade de Iwama. Eu, no entanto, não me sinto preparado para isso. Qual o segredo da minha saúde? Eu não como muita carne ou comidas gordurosas. Eu como comidas ricas em fibras. Sair para excursionar ministrando seminários é uma boa oportunidade para eu perder um pouco de peso. Eu geralmente não como muito quando estou viajando. Denver tem sido uma exceção, no entanto. Comer as refeições que Homma-kun tem preparado para mim tem estimulado o meu apetite. [“Kun” é um sufixo indicador de familiaridade.] Se eu tivesse um segredo para a boa saúde, este seria manter-se ocupado. Eu tento criar para mim mesmo uma situação na qual eu me mantenha muito ocupado, me mantendo todos os dias cheio de atividades positivas. O meu lema diário é o de que, a cada passou que eu dou, deve haver uma outra tarefa esperando para ser completada. No mesmo dia em que tiver retornado desta viagem aos E. U., eu viajarei para o nordeste de Honshu para dirigir uma demonstração na Convenção de Aikido da Região de Tohoku.

Gaku Homma Sensei: Durante o tempo que eu vivi no dojo do santuário Aiki em Iwama, todos chamavam você de o “Mou-chan” De Iwama [“Mou” é uma abreviação para Morihiro, e “chan” é um termo utilizado para demonstrar carinho.] ou “o Napoleão de Iwama”. Como você conseguiu estes nomes?

Morihiro Saito Sensei: Desde a época em que me tornei um uchi deshi no Dojo de Iwama até a morte do Fundador, eu era um jovem muito ocupado. Durante o período em que era um uchi dechi, eu também trabalhava para a [companhia] Estrada de Ferro Japão. O único tempo que eu tinha para mim mesmo era no percurso do dojo para a linha de ferro e na volta. Fora isso, eu não tinha um tempo pessoal. Minha vida consistia em trabalhar e praticar. Eu não tinha tempo para ouvir música ou para seguir os últimos modismos ou esportes como os outros rapazes de minha idade. Às vezes eu trabalhava no turno noturno na estrada de ferro, então meus dias e noites se confundiam. Se eu precisasse de um tempo extra para realizar uma tarefa pessoal – como consertar meu uniforme – eu teria que encurtar as minhas horas de sono. As pessoas da minha cidade costumavam dizer: “Napoleão só precisava de três horas de sono em seu cavalo. O Mou-chou de Iwama, dormindo em suas roupas, só precisa de 30 minutos antes que ele possa estar preparado para trabalhar novamente”. Posteriormente o nome “Napoleão” pegou e se tornou meu apelido. Meu corpo não se esqueceu daqueles dias – eu ainda sou ocupado! O apelido “Mou-chan” também me traz recordações. Eu não fiz nada para que isso acontecesse, mas por alguma razão as pessoas na cidade de Iwama e das áreas ao redor tinham medo desse nome. Todos conheciam esse nome, que era carregado de estigma. Se qualquer Yakuza da vizinhança ou garotos da localidade tentassem arrumar confusão em Iwama, a menção do nome “o Mou-chan de Iwama” geralmente fazia com que eles desistissem. Isso era de uma grande surpresa para mim! Um dia, pouco tempo antes da realização do festival, os rapazes locais entraram em uma disputa contra um grupo rival de uma cidade vizinha. Parecia que este grupo rival queria tomar conta dos espaços de venda do festival, e eles pensaram que essa poderia ser uma boa chance de invadir o território de Iwama. Eles juntaram o seu grupo e entraram em Iwama com o Yakuza na liderança. Um dos rapazes de Iwama me encontrou por acaso e me pediu ajuda para expulsar os seus rivais. De início eu recusei, não querendo me envolver em suas lutas pessoais. Mas, sendo jovem e não conhecendo o significado do medo, eu finalmente concordei em ajudá-los. Calçando botas de couro para proteger meus pés e uma jaqueta de couro pesada para me proteger de um ataque de facas, eu me preparei para dar uma mão. Eu fiquei surpreso quando cheguei à cena. Eu não tinha idéia de quantas pessoas haviam se juntado nas ruas, preparadas para lutar! Não sabendo o que fazer eu entrei diretamente entre os dois grupos e falei: “brigar no dia de um festival sagrado não é bom”. O chefe rival deu um passo em minha direção e me perguntou: “Hei você, rapaz – quem é você?” “eu sou Saito”, respondi, mas isso não teve muito efeito. Então alguém de Iwama gritou: “ele é o Mou-chan de Iwama!” Com aquilo o líder rival se ajoelhou com as suas mãos prostradas no chão, com a cabeça abaixada ele se desculpou. Eu disse aos rapazes de Iwama que tinham começado a briga para se desculparem também. Então eu agarrei os líderes de ambos os grupos e os levei até um bar de saquê local. Me dirigindo aos rapazes de Iwama, eu disse bem firme: “qualquer um que começa uma briga está errado e precisa remediar a situação servindo saquê àqueles que feriram. Consertem essa situação agora!” E com isso eu saí. A maioria das pessoas da cidade conheciam o meu apelido mas não o meu rosto, já que eu estava muito ocupado trabalhando todo o tempo. Porque eu praticava Aikido, a minha reputação parecia crescer junto com este. Eu geralmente era chamado para resolver disputas menores, mesmo antes da polícia ser chamada. Eu ainda não tenho certeza se a minha reputação era boa ou ruim. [Sorri] Obviamente, eu não tenho mais uma reputação daquele tipo. Aqueles dias eram muito diferentes dos de hoje. Era uma época mais inocente – especialmente na parte rural.

Gaku Homma Sensei: Me parece que você ainda é o Napoleão de Iwama. Na tournée deste seminário, em um período de duas semanas, você viajou do Japão para os US, ensinou tanto na costa leste quanto na oeste, e em seguida veio para Denver sem nenhum intervalo de descanso. Me parece uma agenda estafante. Da maneira que você vê, o que faz a vida valer à pena?

Morihiro Saito Sensei: O que me faz mais feliz é ensinar aquilo o que herdei do Fundador. Eu me sinto muito preenchido ao visitar meus estudantes em todo o m
undo, sendo capaz de ficar em suas casas, ensinando e praticando junto com eles. Quando eu estou em casa, em Iwama, se há um pouco de tempo livre, eu gosto de passar um pouco de tempo no Aiki no Ie [Aiki chalé] sentado ao redor do irori [lareira sunken] com velhos amigos, comendo e bebendo juntos. Em um dia como este, eu gosto de fazer a maior parte da comida. Eu não sou muito exigente com a comida, mas sou exigente quando estou cozinhando. Por exemplo, eu gosto de preparar meu próprio tempero com pimentas que eu plantei em meu jardim. Eu tenho uma maneira especial de preparar as pimentas com óleo de gergelim. Tem que ser justamente assim. Eu também gosto de fazer o meu próprio udon [espaguete de farinha de trigo] e soba [trigo-sarraceno]. Eu gosto de secar e moer o grão, preparar a massa e cortar eu mesmo o espaguete. Meu filho Hitohiro dirige o seu próprio restaurante de soba, então eu tenho fonte fresca e orgânica de trigosarraceno. Eu não gosto de me gabar, mas eu acho que o meu espaguete tem uma reputação muito boa. Eu também gosto de ir ao hinoki buro [casa de banho de ciprestes] para relaxar. Eu não posso descrever o quão boa é a sensação. Eu já sou avô; eu tenho treze netos. E mais, eu acredito que para pessoas que possuam os seus próprios dojos, não existe aposentadoria. É o meu destino continuar. Eu sinto que é a minha obrigação ensinar o Aikido do Fundador para o maior número possível de estudantes. Quando eu morrer, uma ligação direta com a sua técnica irá desaparecer. Me foi dada a benção de 23 anos de experiência com o Fundador… O que eu aprendi, eu aprendi com ele, e o que eu aprendi eu me sinto compelido a ensinar. Outros shihans têm liberdade, mas eu não. Existem shihans espalhados por todo o Japão e por todo o mundo que, em um determinado momento, se juntaram ao Fundador para praticar. O Fundador entendeu a essência do Aikido e ele a carregava na palma de sua mão. Aqueles que se juntaram brevemente aos seus pés nunca foram capazes de realmente ter a benção que o Fundador tinha em suas mãos – então eles deixavam. Iwama é para os aikidoístas o que, por exemplo, Meca é para os mulçumanos, ou que o Vaticano é para os católicos. Metaforicamente, Iwama é um farol, e é a minha obrigação manter a sua luz acesa e brilhante. Para outros shihans, o farol simboliza as grandes realizações do Fundador. Eles utilizam essa luz para iluminar o seu caminho enquanto eles navegam livres em embarcações que eles próprios construíram. Enquanto essa luz continuar a brilhar de Iwama, as raízes do Aikido continuarão existindo. Eu acredito que é muito importante não se esquecer deste ponto. Eu me juntei ao dojo de Iwama em 1946. Até a sua morte, eu permanece com o Fundador durante 23 anos, todos os dias. Desde sua morte eu tenho permanecido em Iwama, embora eu tenha a posição de shihan no Hombu Dojo da Aikikai. Todos os dias eu tenho me dedicado em manter a luz acesa e brilhando no farol deixado pelo Fundador. Eu tenho ouvido que alguns aikidoístas distinguem entre os estilo de técnicas de Iwama do “Aikido mais moderno”, chamando o estilo de Iwama de tradicional e até mesmo de ultrapassado. Em minha opinião isso é um erro. Eu acredito que se negarmos as origens de nossa própria prática, nós negamos a sua validade. Quando as pessoas dizem que o estilo de Iwama é ultrapassado, elas me fazem lembrar de pessoas cortando um galho de uma árvore enquanto estão sentadas na ponta desse mesmo galho. Eu nunca diria que o estilo de Aikido de Iwama é a única forma válida de Aikido. Cada instrutor possui o seu caráter individual que é construído através de seu ambiente e arcabouço cultural. É natural que diferentes estilos e diferentes organizações tenham se desenvolvido. Viajar pelo mundo me ajudou a compreender isso, conforme eu ia entrando em contato com muitas pessoas diferentes, lugares e culturas. Eu acho que é bom que estudantes aprendam com muitos instrutores diferentes e pratiquem em dojos diferentes. No entanto, eu também acredito que é de vital importância praticar as técnicas fundamentais do Aikido. Nós não podemos esquecer a fonte de nossa prática. Na vida das pessoas, geralmente chega um momento no qual elas passam a refletir suas próprias raízes e herança. Eu acho que é importante para cada um de nós incluir um estudo das técnicas do Fundador enquanto nós viajamos em nossa própria jornada de Aikido. A nossa ligação mais próxima com a fonte é o Fundador, Morihei Ueshiba, e a ligação mais próxima com ele é o Dojo de Iwama. É importante para a comunidade do Aikido que mais pessoas se dêem conta de que as raízes de nossa prática estão ligadas ao Fundador. É importante repassar as grande realizações e conquistas do Fundador corretamente – ainda que isso seja passado para uma pessoa de cada vez. Por essa razão, eu mantenho a luz no farol de Iwama acesa e brilhante em Iwama. É por isso que eu não tenho liberdade. Ao invés de liberdade, eu tenho meu destino – e eu aprecio isto. Manter o dojo do Fundador vivo e bem é o que az a minha vida valer à pena ser vivida. Gaku Homma Sensei: Eu sei que isso foi há muito tempo atrás, mas você poderia nos dizer como era a vida quando você era um uchi deshi no dojo de Iwama? Eu entrei no Dojo de Iwama em 1946. Isso foi logo depois que o Japão perdeu a guerra, e não havia muitos recursos disponíveis; era uma época muito pobre. Nascido e criado na cidade de Iwama, eu entrei no dojo quando eu tinha 18 anos de idade. Não muito depois disso, alguns dos uchi deshi do Fundador do Hombu Dojo, vieram para Iwama. Gozo Shioda [O fundador do Yoshinkan Aikido] se mudou com sua família de seis (o que me causou um pouco de surpresa). Eles ficaram por aproximadamente dois anos. Koichi Tohei [fundador do Ki Aikido] também veio aproximadamente na mesma época, depois de ser dispensado do serviço militar. Eu me lembro na época de me ficar perguntando se havia sido a guerra que o tornara rijo e forte. Ele deixou o dojo quando se casou. E havia outros dois estudantes que haviam se tornado uchi dechi na mesma época que eu. Um se tornou um diretor de educação regional e o outro agora é um membro da Diet. Eu sou o único que foi deixado em Iwama! [Sorri] É difícil imaginar como Iwama se parecia naquele tempo. Onde hoje você vê casas, havia hectares de florestas selvagens. Nenhuma das ruas eram pavimentadas, e quando chovia algumas delas se transformavam em lama até os calcanhares. Nós calçávamos geta [sandálias de madeira] com um pedaço de madeira que se estendia da base, do contrário a lama ficaria alojada entre as tiras de madeira das duas tiras de madeira da geta normal, fazendo com que ficassem muito pesadas. As getas de uma única tira de madeira eram melhores para se andar na lama – e na terra seca elas eram úteis para desenvolver equilíbrio e coordenação! Nós usávamos muito pouca eletricidade, especialmente nas áreas ao redor do dojo. À noite era tão escuro que alguém poderia vir em sua direção, beliscar o seu nariz e você ainda não ser capaz de ver quem foi! O Fundador era um membro proeminente da comunidade, e ele tinha a distinção de ter a única eletricidade da área. O contraste entre a área ao redor e as luzes brilhantes do dojo à noite, fazia o lugar parecer mágico. Depois, quando a minha casa foi construída, nós também puxamos fios elétricos da casa do Fundador para a minha. Na época aquilo era considerado um luxo. As pessoas da cidade consideravam que os freqüentadores do dojo de Ueshiba-san eram um pouco diferente. Por exemplo, o modo como nós, uchi deshi nos vestíamos causava mais do que alguns poucos olhares alarmados enquanto andávamos pela cidade. Nós vestíamos keiko gi (esfarrapado e remendado na gola), hakama desbotado (muito mais curto do que os de hoje, na altura do tornozelo), e haori (parte de cima do keiko gi mais curta) decorada com estampa batik. Nós carregávamos jos de ferro para fortalecer nossos braços, balançando-os e arrastando-os ruidosamente atrás de nós conforme andávamos. Era sabido que as pessoas da cidade não deixariam que seus filhos fossem à casa de Ueshiba-san de maneira alguma. Como ameaça, os pais advertiam seus filhos desobedientes que, se eles não se comportassem, eles seriam mandados para o Ueshiba-san [Sorri]. Eles costumavam nos chamar de ban kara [um grupo bruto, difícil de ser encarado]. Tendo ouvido as fofocas da cidade o Fundador nos advertiu com um sorriso para que não assustássemos muito as pessoas da cidade. Poucos anos depois do fim da guerra, a vida começou a retornar ao normal. O país ainda estava em transição, e havia muitas pessoas sem trabalho. Muitas se juntavam ao Iwama dojo buscando por uma nova chance na vida. Embora nós tivéssemos um jardim no dojo, logo havia mais bocas para serem alimentadas do que podíamos suportar. O Fundador colocou os novos uchi deshi para trabalhar limpando os campos ao redor para que eles pudessem plantar. Os campos eram cobertos com densas alamedas de bambu, cujas redes de raízes emaranhadas tornavam a tarefa imensamente difícil. Alguns dos novos recrutas decidiram que aquele trabalho era muito duro, se reuniram e desapareceram durante a noite. O trabalho era duro para mim também. Mas mesmo se eu quisesse fugir eu não teria lugar para ir já que eu havia nascido e crescido em Iwama. E, de fato, eu não fugi! [Sorri]. Depois do incidente da limpeza dos campos, o Fundador evitava pedir às pessoas que fizessem tarefas que fossem muito difíceis. A área do dojo onde hoje nós praticamos bokken e jo é onde o Fundador e sua esposa tinham seu jardim particular. Outros campos vastos eram plantados com batatas, amendoins e arroz. Hoje eu tenho um pequeno jardim do qual cuido como passatempo. Apenas poucos uchi deshi selecionados são permitidos trabalharem no jardim. Na verdade, a maioria dos uchi deshi são especificamente advertidos para que não trabalhem no jardim. Quando eles trabalham, é preciso mais trabalho para consertar o que eles fizeram. [Sorri] Os últimos uchi deshi que trabalhavam no jardim foram você, Homma-kun e a empregada do Fundador, Kikuno-san. Eu me lembro de você com um feixe de vegetais alçado às suas costas enquanto você saía para acompanhar o Fundador ao Hombu Dojo como seu otomo [assistente]. Depois da morte do Fundador não houve outros uchi deshi que trabalhassem especificamente nos jardins. Gaku Homma Sensei: Eu também me lembro, naquela época eu tinha apenas dezessete anos de idade. Aqueles dias eram difíceis. Depois que o Fundador terminava a sua cerimônia matutina diária, eu costumava acompanhá-lo ao jardim para colher vegetais para serem utilizados nas refeições do dia ou, quando se tinha tempo extra, levá-los para o Hombu Dojo em Tóquio. Falando em Hombu Dojo – eu tenho lido muitos artigos e livros sobre história do Aikido escritos por uchi deshis do Hombu [Dojo], mas, quando eu acompanhava o Fundador à Tóquio, não havia uchi deshis vivendo no Hombu Dojo. Você pode esclarecer isso? Morihiro Saito Sensei: No final da guerra, havia muitos uchi deshi vivendo no Hombu Dojo. A maioria dessas pessoas são muito velhas ou já faleceram. Depois que a guerra acabou, o Fundador viveu mais em Iwama, indo à Tóquio apenas para eventos ou cerimônias especiais… Da última geração de estudantes a estudar diretamente com o Fundador, muitos que dizem que eram seus uchi deshis eram, na verdade, shindoin [intrutor assistente] de 2o ou 3o dan no Hombu Dojo. Muitos recebiam o equivalente a aproximadamente duzentos dólares por mês de salário, moravam em apartamentos baratos próximos ao dojo, e vinham ao dojo somente para a prática. Esses kayoi deshi [estudantes que moram fora do dojo] não cuidavam do Fundador. Exceto quando o estavam ajudando como uke, os kayoi deshi não tinham a permissão de se aproximarem dele. O Fundador exigia muito respeito. Muitos agora dizem que eram próximos ao Fundador, mas isso não é realmente o caso. Mais tarde na vida do Fundador, um pouco antes de falecer, mesmo os shihans de alto nível só tinham a permissão de lhe cumprimentarem; eles não estavam na posição nem mesmo de iniciar uma conversa com ele. O Fundador não queria ter muitas pessoas próximas a ele, e havia realmente poucas pessoas que cuidavam dele.

Gaku Homma Sensei: Ao falar daqueles que cuidavam do Fundador, em sua vida privada, não podemos esquecer de sua esposa [de Morihiro Saito sensei]. Você poderia dizer nos um pouco a seu respeito?

Morihiro Saito Sensei: Em 1951, o Fundador limpou a terra onde hoje fica a minha casa. Nós construímos a casa juntos. No quintal há um castanheiro que o Fundador plantou. Uma vez que eu era um uchi deshi era entendido que eu deveria auxiliar o Fundador. Minha baba [apelido para mulher ou avó] não era uma estudante do Fundador e, desta forma, ela não tinha as obrigações que eu tinha. Mas ela trabalhava até mais duro do que eu para cuidar do Fundador e de sua esposa. Eu ia para o trabalho todos os dias e deste modo, eu não estava sempre no dojo. Minha baba trabalhou 24 horas por dia durante 18 anos cuidando deles. Ela cuidava tão bem deles que, se por alguma razão ela não pudesse estar, a esposa do Fundador, Hatsu, teria problemas para saber onde estavam as coisas. Uma vez Hatsu ficou doente e tinha dificuldade para falar. Minha baba entendia o que ela estava tentando dizer apenas através do movimento de sua boca. Foi muito o tempo em que ela passou com eles. Eu tenho recebido promoções e reconhecimento de realizações por parte do Hombu Dojo, mas a minha baba é a pessoa que mais merece o crédito quando se trata do cuidado com o Fundador e a sua esposa. Apenas a minha aba tinha a permissão de falar com o Fundador diretamente, lhe dando conselhos e oferecendo as suas opiniões. Além de cuidar do Fundador, ela também cuidou de nossa família e inúmeros uchi deshi ao longo dos anos. Eu sou muito grato à minha esposa.

Gaku Homma Sensei: Eu me lembro muito bem de sua esposa. Ela sempre sabia quando aparecer com uma tigela grande de arroz cheia até a borda. E como você acaba de dizer, se o Fundador estava zangado e sua esposa aparecesse, o seu estado de espírito mudava miraculosamente para o de uma criança feliz. Isso sempre me surpreendeu.

Morihiro Saito Sensei: Um pouco antes do Fundador ir para o hospital em Tóquio, os efeitos de sua doença estavam no seu pior. Nós todos estávamos muito tristes por ele, mas era difícil chegar até ele. Era triste ver um grande artista marcial aproximar-se de seu fim. Era um difícil momento para você também, Homma-kun, uma vez que cuidava dele intimamente. O temperamento do Fundador era imprevisível no melhor. Se o seu humor estivesse ruim quando você entrasse, você poderia ser pego por sua raiva. Durante o último ano de sua vida, ninguém de Tóquio visitava o Fundador, porque eles não queriam se envolver. Aquela foi uma época difícil e tumultuada para o Fundador. E também deve ter sido difícil para ambos vocês, Homma-kun e para Kikuno-san, uma vez que vocês eram tão jovens. Foi uma época difícil.

Gaku Homma Sensei: Talvez porque nós fossemos muito jovens é que o Fundador se sentia à vontade conosco e falava conosco, mesmo próximo do fim. Voltando para acontecimentos mais recentes, Sensei, o que você achou do seminário aqui em Denver?

Morihiro Saito Sensei: Primeiro eu fiquei surpreso que aproximadamente 300 pessoas tenham se registrado para os três dias de seminário. É um número e tanto! Foi muito bom ver um seminário cuja participação não foi pontuada pelo oferecimento de “doces” como um exame de graduação, etc. Que um dojo independente como a Nippon Kan possa atrair tantos estudantes de todo o mundo para um seminário com seus próprios meios é muito bom. Eu acredito que havia estudantes de mais de 17 organizações diferentes e de outros dojos independentes. Eu fiquei muito feliz por tantas pessoas terem vindo. Eu acredito que o Fundador no céu deve estar feliz também. A comunidade das artes marciais, incluindo a comunidade do Aikido, está traçando um futuro no qual mais e mais grupos se tornarão independentes – especialmente nos Estados Unidos e Europa. A organização do Fundador, Aikikai, deve prestar atenção à isso. Eu acredito que, ao invés de se concentrar em normas mais duras e mais restrições, eles deveriam ser mais sábios para reconhecer e respeitar organizações independentes. Isso pavimentaria o caminho para relações mais fortes e um futuro mais estável. Indo além das barreiras da afiliação ou estilo, gera-se uma maravilhosa oportunidade para que pessoas boas estejam juntas, como demonstra esse seminário. A filosofia do Fundador de amor e harmonia se manifestou nesse seminário de Denver. Eu seria feliz em viajar para ensinar em qualquer lugar que tivesse essa união. Você Homma-kun, não está afiliado à Aikikai ou ao estilo de Aikido de Iwama. Mas isso não é problema. O Fato de um dojo independente como o Nippon Kan ser capaz de unir 300 pessoas é uma coisa que não pode ser depreciada. Seus estudantes devem estar orgulhosos da estrutura única de atividades de seu dojo – e da reputação que ele conquistou através de suas contribuições para a comunidade. Eu não acho que seja necessário prestar conta de suas realizações para outra organização. Particularmente, eu espero que eu possa continuar sendo um conselheiro e um contribuidor para a Nippon Kan. Como eu prevejo mais dojos independentes no futuro, eu quero que este estabeleça um bom exemplo a ser seguido pelos outros. Eu tenho grandes expectativas em seu papel como dojo independente estabelecido.

Gaku Homma Sensei: Muito obrigado Saito Sensei.

Morihiro Saito Sensei: Durante o seminário eu ouvi pessoas dizendo, “o estilo de Aikido de Iwama é mais suave do que eu achava que fosse. Eu pensei que o estilo de Saito Sensei fosse mais rígido e severo”. Meu lema para ensinar é ter uma prática feliz que demonstre claramente a lição do dia, de forma que os estudantes possam entendê-la plenamente e a levem para casa com eles. Claro, eu sempre quero uma prática segura sem acidentes ou contusões. Enquanto eu estou ensinando, se eu acho que a explicação irá ser demorada, eu peço aos estudantes que se sentem de maneira confortável. Se o dojo está cheio eu peço para que as pessoas que estão atrás fiquem de pé e, assim, eles possam ver. Eu realizo minhas explicações de maneira clara e devagar. Eu não estou interessado apenas em lançar ukes furiosamente pelo ar. Apenas este ano eu já viajei três vezes para o estrangeiro. No total, eu já ensinei em seminários fora do Japão mais de cinqüenta vezes. Honestamente eu não sei por quanto tempo eu serei capaz de ministrar aulas ao redor do mundo. Enquanto minha saúde for boa, eu sinto que devo continuar a minha missão como testemunha do Fundador. Me deixa muito feliz saber que eu tenho estudantes maravilhosos ativamente ensinando e praticando nos Estados Unidos e em todo o mundo. Eu tenho fé que meus estudantes levam adiante o meu desejo e minha filosofia. Por causa de seus esforços, pessoas de todo o mundo viajam à Iwama para treinar como uchi deshi. Em raras ocasiões eu tenho ouvido a respeito de estudantes que treinaram em Iwama e que voltam aos seus países apenas para causar problemas para outros grupos de Aikido. Eles me preocupam, porque essas pessoas obviamente não entenderam completamente o treino que eles receberam em Iwama. Eles perpetuam a sua incompreensão representando de forma errônea o estilo de Iwama para os outros. Essa nunca foi a minha intenção. É importante, como prioridade primeira, que trabalhemos de forma harmoniosa com outros dentro a comunidade do Aikido em uma base de amizade. Ultimamente eu viajo com o meu otomo, mas houve vezes em que viajei sozinho. Uma ocasião, quando eu cheguei em um aeroporto do nordeste dos Estados Unidos, não havia ninguém para me receber. Uma vez que eu não falo inglês, aquilo foi um problema! Por sorte um grupo de turistas japoneses passaram e eu andei com eles para sair do aeroporto [Sorri]. Eu não posso esquecer das muitas vezes que carreguei minha panela de preparar arroz em minha bolsa, cozinhando para mim mesmo enquanto viajava. Eu nunca imaginei que iria estar sentado na casa de Homma-kun comendo comida japonesa em Denver, Colorado. Gaku Homma Sensei: Foi um prazer e uma honra Sensei. Muito obrigado. * * * Depois de sua chegada em Denver, uma das primeiras perguntas que Saito Shihan me fez foi “Que técnicas eu devo ensinar esta noite?” Depois de cada aula ele me perguntava se a lição tinha sido adequada e se determinada série de técnicas seriam apropriadas para a lição seguinte. Eu fiquei impressionado pelo seu zelo e dignidade profissional. Depois da prática, na área de espera, Saito Sensei agradecia à todos presentes e oferecia a eles frutas e lanches. Era uma prazer ver tal acolhimento e gentileza oferecidos por um homem de uma posição tão alta. Um espírito de generosidade prevaleceu ao seu redor durante todo o seminário. Durante a festa de despedida, nós acompanhamos Saito Sensei ao banheiro e o aguardamos junto à pia para lhe oferecer uma toalha para secar suas mãos. Eu fiquei tocado enquanto o observava cuidadosamente limpando a pia que havia sido suja por outros como cortesia para o próximo usuário. Eu acompanhei Saito Sensei, seu tradutor, seu otomo, e outros convidados para São Francisco para acompanhá-los em sua decolagem para o Japão. Antes do avião aterrissar em São Francisco, eu observei Saito Sensei remover saco para vômito do bolso do assento em sua frente. Eu fiquei preocupado que ele não estivesse se sentindo bem. Mas apenas perguntou a todos nós em sua maneira gentil, se nós tínhamos lixo para jogar fora, colocou nossos guardanapos e restos dentro do pacote, e então enfiou o pacote de volta generosamente no bolso em sua frente. Ele disse que isso faria com que o trabalho fosse mais fácil para a outra pessoa. Saito Sensei assegurava que seu otomo estivesse sendo bem cuidado, até mesmo oferecendo a ele porções de suas próprias refeições. Ele também tomou conta de um de meus estudantes que atuou como motorista em São Francisco, segurando sua mão e discretamente depositando um sinal kokoro zuke [pagamento de agradecimento] em sua palma. A posição de Saito Sensei como um líder dentro da comunidade global de Aikido foi construída em uma vida de trabalho duro e esforço. Ele é um bujin [artista marcial] verdadeiro. Sua humanidade, gentileza e circunspecção permanecem impressas em minha memória – e elas me lembram o lado privado do Fundador, Morihei Ueshiba. Conforme andávamos no terminal do aeroporto lotado, minha mente retrocedeu a uma ocasião na qual eu andava como o Fundador em uma estação lotada de Ueno, Japão. Ambos tinham a mesma maneira de andar.

Tradução: William Soares.